Dignidade encarcerada
Dignidade encarcerada
Um Olhar Sobre a Invisibilização das internas de mata escura
Estava escuro dentro da barriga do monstro
O complexo penitenciário Lemos de Brito é uma cidade à parte. Dentro de Salvador, protegido por muros, guaritas e revistas frequentes, lembra um forte militar dos tempos antigos. A particularidade, porém, é que ele protege quem está do lado de fora.
Mesmo assim, de manhã cedo, a fila nos portões é quase quilométrica. Mas depois de passar pela segurança, uma vez dentro do complexo, o grupo de visitantes se divide de forma drástica. Indo pelo caminho da direita, a trilha leva ao conjunto masculino, embrenhado mata adentro. Indo pela esquerda, mais perto da portaria, fica o esquecido conjunto feminino que raramente recebe visitas.
Embora o número de internas seja atualizado todos os dias, o número médio na última semana de Maio de 2022 era de 106 mulheres. De acordo com a diretoria do conjunto, os delitos mais comuns nesse grupo são Tráfico de Drogas, Uso de Entorpecentes e Latrocínio. Esse último geralmente está ligado aos outros dois delitos.
A Diretora Adjunta do Conjunto Prisional Feminino Lemos de Brito, Fernanda da Costa Carvalho Lima, ainda posiciona a percentagem de reincidência, ou seja, a volta de algumas detentas à prisão depois de libertas, entre 20 a 30%. A diretora ainda dá a entender que essa percentagem se dá por fatores externos, como a dificuldade de sair de facções e a falta de oportunidades que as egressas enfrentam na vida externa.
Implementado em todo o país, o código penal prevê que qualquer um que cometa um crime como esses têm seu direito constitucional de liberdade revogado por um período de tempo previsto no código referente ao delito cometido. No entanto, o senso de vingança e revanche as vezes fala mais alto que o de justiça.
Por isso, muitas vezes acontece de, focado no direito de punir alguém por seus crimes, o fato de que essas pessoas vão retornar para a sociedade, idealmente reabilitadas, é invisibilizado. O desafio, como expõe a diretora adjunta, é “socializar quem nunca foi socializado” e “dar limites á quem nunca os teve”.
E além disso, tratar essas mulheres com a dignidade que lhes é cabida pelo simples fato de serem pessoas humanas e protegidas pelos direitos humanos e a lei constitucional. O que não é sempre o caso.
PoR Helena Pamponet
Divulgação/Lemos de Brito
Aqueles que se propõe a deter os monstros
No entanto, nem tudo está perdido. Numa parceria muito necessária, o governo federal e instituições civis vêm trabalhando para melhorar a situação e tentar deter de uma vez por todas os monstros do crime e do maltrato das pessoas encarceradas.
Exposto pelo livro de 2015 “Presos que Menstruam”, escrito pela jornalista Nana Queiroz, o número de faltas para com Direitos Humanos em prisões e penitenciárias femininas do Brasil deixa muito claro que é necessário muito diálogo sobre o assunto.
O tópico, já foi trazida para a mesa de conversa nos círculos de direitos humanos ao redor do mundo, e em 2010 o congresso da ONU publicou as “Regras Mínimas para o Tratamento de Mulheres Presas” ou como são conhecidas mais informalmente: “As Regras de Bangkok”, que serviriam como anexo às Regras de Mandela.
O regulamento, que não possui força vinculante, tem como objetivo desenvolver regras de tratamento de mulheres em situação de cárcere e normas não privativas de liberdade para mulheres infratoras, levando em consideração seus corpos e suas necessidades diferentes.
As Regras de Bangkok ainda sugerem a criação de políticas públicas para a prevenção a crimes e uma justiça criminal especializada para mulheres, levando em conta temas como maternidade e gestação, além de idade, gênero e questões biológicas. A mera necessidade de um documento como esse expõe a inaptidão do sistema carcerário tratar desses corpos que não são masculinos e por isso, faltar com dignidade.
A dignidade da pessoa humana é um direito assegurado pela constituição brasileira desde 1988, assim como a liberdade e o direito à educação. O que acontece nos casos de pessoas infratoras é que lhes é tirado o direito de liberdade, mas também outros, como o acesso à educação e vestuário. Privações extremas assim, e o má tratamento tendem a fazer com que essas mulheres se sintam “não pessoas”.
Para Tâmara Sampaio, advogada especializada em Direitos Humanos, isso configura um risco sério, já que uma vez que essas pessoas vão retornar para a sociedade, a possibilidade de reabilitação é quase inexistente.
No Complexo feminino Lemos de Brito, a equipe de psicologia conta que seu papel dentro da penitenciária e das vidas encarceradas das internas é de trabalhar a consciência do crime cometido e da razão de seu encarceramento, mas também de apoio emocional e de educação de seus direitos como cidadãs.
“O Sofrimento é uma coisa bem presente aqui, sem sombras de dúvidas”, afirma Marina (nome fictício), membro da equipe de psicologia da penitenciária feminina, quando perguntada sobre o possível ciclo de violência e crime causada pela falta da figura materna em muitas famílias em que a mãe foi presa. “Em todo caso de abandono há sim a possibilidade de a pessoa se voltar para um contexto de risco, de vulnerabilidade [...], se não tiver nenhum representante de afeto, ela [a criança] pode sentir uma revolta, uma falta de regulamentação do ‘porque ser’”.
Em resposta a isso, o Supremo Tribunal Federal (STF), concedeu habeas corpus coletivo em fevereiro de 2018 para detentas gestantes e que têm filhos até a idade de 12 anos, que não tenham cometido crimes graves e/ou contra seus descendentes. Em termos práticos, essas mulheres tem o direito de ter a prisão preventiva transformada em domiciliar para que elas possam cuidar de seus filhos.
Ainda de acordo com Marina*, a psicologia dentro do cárcere também tem a função de trabalhar uma rede de apoio emocional, formada por familiares e em especial, a ligação entre mãe e filhos. Segundo a psicóloga, essa prática ajuda a trabalhar também a perspectiva “extra muro” e talvez torna a experiência violenta do cárcere menos solitária e abandonadora.
“Tem umas [detentas] que conseguem lidar com isso [o aprisionamento] justamente por causa de uma rede de apoio ativa.”, explica a psicóloga."
A Ajuda de fora
A situação do seguimento dos direitos humanos no Brasil está longe de ser ideal, e o estado brasileiro já foi processado pela corte interamericana de direitos americanos 11 vezes, sendo a primeira vez em 2006 e a última em 2020. Quatro desses casos são sobre o descumprimento do acordo de Direitos Humanos em penitenciárias.
Com atenção internacional para essa questão, é natural que parte da sociedade sociedade civil se sinta na obrigação de suprir a falta de ajuda que o estado não foi capaz de proporcionar e organizações beneficentes como a “S.O.S Presídios” ou a “Tamo Juntas” surgiram.
Mulheres encarceradas tem seus direitos fundamenteis violados diariamente, são invisibilizadas e negligencias pelo Estado. Dividindo uma cela com outras dez mulheres desconhecidas, sem condições básicas de higiene, sem o acesso a informações, sem encontrar refúgio em atividades laborativas ou culturais. Mulheres que não merecem nem mesmo o perdão da própria família, que as abandonam durante o cárcere. Mas após ele, o que acontecerá?
Para “aliviar” a vivencia precária dessas mulheres, dentro e fora do ambiente violento da penitenciária, o projeto “Tamo juntas”, formadas por advogadas, psicólogas e assistentes social, busca restaurar um pouco da dignidade e identidade perdida por essas mulheres, através da comunicação e do diálogo, além do acolhimento mútuo.
Em 2009, o Conselho Nacional de Justiça fundou o Projeto "Começar De Novo", com o objetivo de ajudar na ressocialização dos egressos, produzindo parceiras com empresas e órgãos públicos para que essas instituições empreguem uma cota de ex-presdiários colabores.
No website do programa, estão listadas as prioridades e diretrizes do projeto, que envolvem a preparação de detentos ainda dentro das penitenciárias, ofertando cursos profissionalizantes e posições trabalhistas ainda dentro do sistema. Além disso, o projeto visa sempre a captação de novos parceiros fora das penitenciárias.
Na Bahia, cinco instituições já fazem parte do projeto. E na penitenciária feminina Lemos de Brito, a diretoria alega que as internas têm o direito de trabalhar e fazer cursos. A diretora adjunta dá o exemplo da costura, e explica que durante a pandemia do Corona Vírus, as detentas produziram máscaras que distribuídas para outros presídios.