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Dignidade encarcerada

Um Olhar Sobre a Invisibilização das internas de mata escura

Entrevista: Projeto “Tamo Juntas!”

por: Ana Luiza Castro e Maria Clara Ribeiro

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A entrevista a seguir foi realizada com Janine Souza, Co-presidenta do projeto “Tamo Juntas” e coordenadora do projeto mutirão feminista pelo desencarceramento e Carla Lima advogada do projeto “Tamo Juntas”, com o objetivo de entender sobre essa realidade e as dificuldades que perpassam mulheres encarceradas no sistema penitenciário Soteropolitano. 

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Sobre o que se trata o projeto e como foi idealizado?

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Janine Souza: O projeto foi idealizado em 2017, com o objetivo de realizar HC’s (Habeas Corpus), direcionados às mulheres que estavam em situação de prisão provisória.

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A intensão da “Tamo juntas” era oferecer acesso a direitos e a justiça, então a gente percebeu que esse acesso poderia ser dado de outras maneiras, a gente sentia que muitas vezes as mulheres ali tinham a intensão de buscar saber como estava o processo, elas tinham demandas em relação a visitas, a documentos, e para além disso, tentando fazer uma atuação junto com a assistência social do presidio. É um momento também em que podemos fiscalizar, saber o que está acontecendo dentro do sistema prisional, como advogadas, verificar se há ilegalidade nos atos que estão acontecendo lá dentro.

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A “Tamo juntas” é um grupo de advogadas feministas que nasce pensando no enfrentamento a violência contra a mulher. O grupo se estendeu tendo em vista que somente o jurídico não é capaz de dar conta dos problemas da violência doméstica, então a “Tamo juntas” começou a pensar em como fazer esse enfrentamento de uma forma mais completa, hoje nosso projeto é formado por advogadas, assistentes sociais e psicólogas.

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Depois de um ano de trabalho, as voluntarias começaram a pensar que se a “Tamo juntas” era uma organização feminista e que se colocava no enfrentamento a violência contra a mulher e pelos direitos humanos das mulheres, ela necessariamente precisava estar também ao lado das mulheres que estavam em situação de prisão, tendo em vista que essas são as mulheres que além de passar pelas questões da vulnerabilidade, da questão racial, e da desigualdade de gênero, elas também precisavam passar por isso sob a custodia do Estado, então essas questões precisam ser suportadas de forma mais drástica.

 

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Quando vocês realizam o atendimento ás mulheres custodiadas, como é esse primeiro contato com as voluntárias? Como as internas recepcionam o projeto?

 

Carla Lima: Depende muito da mulher. As mulheres que já foram presas antes e que já conhece o projeto sabem mais ou menos como funciona, as novatas sempre têm um estranhamento. Algumas ficam com o pé atrás. Muitas não entendem como funciona e acham que porque não possuem condições financeiras vão ficar sem defesa.

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Tem resistência por que pensam: “nada vem de graça”, outras já lidam naturalmente. A função não é apenas fazer os pedidos [de liberdade], mas é fato dar o acesso a essa informação jurídica, porque para elas talvez seja totalmente diferente, por ser um universo elitista com a linguagem difícil e nem todos estão dispostos a fazer isso.

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Tem gente que diz que nosso trabalho é apenas jurídico, mas não é. Tem interna que senta apenas para chorar. É o momento delas, então a gente precisa ter essa sensibilidade. Mas não temos nenhuma interna que recusa o atendimento, até aquelas que tem advogado pedem atualizações do processo.

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Janine Souza: A relação se dar nesse sentido, primeiro explicar qual é o nosso trabalho e as questões jurídicas, mas muitas vezes eles se sentem livres para conversar sobre outras coisas da vida e outros assuntos diversos.

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A.L..: O projeto contribui para a recuperação da dignidade, reconstrução da identidade das mulheres custodiadas? 

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Carla Lima: Fizemos uma reunião no final do ano, pensando em como conseguir fazer com que ela [interna] retome esse vínculo que foi interrompido pela situação de cárcere. Pensando nisso criamos um novo projeto, para poder de fato conversar com elas sobre o cárcere, entender para o que o cárcere se destina.

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As mulheres em cárcere trazem esse lugar de exclusão, esse lugar do qual ela precisa estar excluída porque ela transgrediu a “norma da mulher”, o ser mulher não passa pelo cárcere, e não é isso. Trazer essa consciência e fazer elas pensarem que elas não precisam se limitar aquilo é bacana. É nossa função reforçar vínculos, restaurar a empregabilidade, que elas aprendam um curso.

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Muitas internas falam “ se eu tivesse acesso as informações que tenho aqui, eu não estaria aqui”. Elas vêm de uma situação de exclusão total, em que meninas de 16, 17 anos nunca saíram da sua comunidade e não sabem ler. É uma realidade de dispare tão grande que fazer com que essa pessoa enxergue que é mais vantajoso trabalhar, estudar do que pegar uma arma para ganhar um salário mínimo no tráfico é um discurso desonroso.

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Janine Souza: Nosso trabalho no presidio é trazer o acesso a informação e isso já a torna uma pessoa digna. Obvio que é algo mínimo, mas lá a escassez de informação é muito grande. Mas o que a gente faz é promover o acesso à justiça, e na situação em que elas se encontram é muito importante, não sei as proporções, mas só em ter um pouco de tranquilidade, saber o que vai acontecer com elas, é fundamental para que elas tenham esperança.

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Agora estamos pensando em um projeto para mulheres egressas [pessoas que saem do sistema prisional], procurar saber o que elas têm interesse em aprender, fazer atividades de formação política.

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As mulheres custodiadas têm a consciência do que realmente está acontecendo e quais são as consequências, ou a limitação ao conhecimento impede que elas enxerguem a situação?

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Janine Souza: A maioria não tem consciência do que está acontecendo. O ambiente jurídico tem muitas formalidades que podem afastar as pessoas, inclusive a comunicação. Mas tem uma questão em comum entre todas, elas querem entender. Esse papel de acesso a direitos se dar, às vezes, só para informar o que está acontecendo ou o que vai acontecer. A questão ao acesso a informação ainda é precária. Quando o advogado explica é importante que elas entendam, mas não sabemos como acontece esse diálogo.

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Carla Lima: Muitas não entendem a situação nem antes, nem durante, nem depois. O Estado não se preocupa em explicar o que está acontecendo, nem mesmo para a sociedade. 

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Os projetos e ações realizados na penitenciaria são propícios a socialização das internas?

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Janine Souza: O que eu posso te dizer é que as internas estão inteiramente abertas para aprender o que for colocado no presidio. Haviam projetos de teatro, manicure, máquina de costura, inclusive elas costuraram mascaras no início da pandemia.

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No entanto, tem mulheres que se recusam a sair. O que tem por traz desse “não querer sair” de um lugar que é violento, problemático? É que não tem perspectiva. Não existe a proposta de ressocializar, apesar de esta na lei, a gente sabe que isso não acontece. Mas se houvesse no presidio atividades de preparação para o mercado de trabalho, elas fariam.

Deveria ter esse cuidado, esse olhar, mas o poder público precisa querer.

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Carla Lima: Tomando como exemplo a pandemia, se você dentro da sua casa, sem poder sair já ficou nervosa, ansiosa... 

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Por que o trabalho é algo importante na vida das internas, mesmo na penitenciaria?

 

Janine Souza: O que elas mais almejam ali, ter um trabalho, uma atividade, principalmente para poder sair.

Ouvimos na sociedade que pessoas presas deveriam procurar trabalhar, mas dentro do presidio o que essas pessoas mais querem é um trabalho, pois não tem o que fazer, é enlouquecedor. Tudo que elas querem é uma atividade cultural, de entretenimento, de trabalho. A certeza que eu tenho é que essas atividades teriam continuidade.

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O movimento feminista observa a situação dessas mulheres e as acolhe?

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Carla Lima: Se pensarmos no movimento feminista hegemônico, no qual muitas se inspiram, eu ainda penso que essas mulheres [custodiadas] estão fora do processo.

 

Precisamos pensar se as mulheres em situação de prisão, antes de serem presas, tinham acesso a informação e formação e como elas incluem esse lugar de debate, por que se eu vou lutar por melhores condições de salário eu preciso ter o mínimo de estabilidade e condição de me manter, uma mulher negra da periferia não tem condições de dizer a sua patroa que precisa de um salário melhor, por que mulheres negras ainda estão lutando pelo direito de existir.

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Estamos falando de mulheres que precisam de uma vivencia digna, ter pelo menos três refeições por dia, ter uma moradia, e não só de trabalho, pois essas mulheres sempre trabalharam, inclusive desde a infância, trabalhando em casa de família. Para as mulheres em situação de cárcere é muito pior, pois essas mulheres tiveram negações de direitos que não foram visibilizados nem ouvidos. O movimento feminista não acolhe as mulheres que estão fora do cárcere, imagine as que estão lá dentro.

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Janine Souza: A conclusão que chegamos é que o movimento feminista negro é quem está à frente e empenhada nos direitos das mulheres encarceradas e em enfrentar essas violações de direitos, visto que nós que estamos na “mira” e a qualquer momento pode ser os nossos corpos que podem estar ali dentro.

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A prova disso é que os materiais e conteúdos produzidos sobre o assunto são feitos por mulheres negras. A discursão ainda precisa muito de ampliação.

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O Estado como garantidor possui sua parte de culpa na invisibilização de mulheres custodiadas? Quando este momento se concretiza?

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Carla Lima: Ambos o Estado e a sociedade têm obrigação com essa mulher [custodiada], que é perguntar “onde estão seus filhos durante a prisão? ” “Por que os filhos não estão na escola? ” “Por que mulheres em prisão provisória ainda estão presas se legalmente ainda são inocentes? ” Quem dar conta disso?

 

A sociedade nem as pessoas que estão lutando por esses direitos estão dando conta. O Estado e o judiciário têm a obrigação. O Estado não se preocupa com essas questões.

 

Janine Souza: A lei prevê que quem comete crime, vai cumprir a pena, mas o Estado escolhe as pessoas criminosas, embora se saiba que as pessoas transgredem a lei, por que é natural do ser humano.

A responsabilidade das violações de direitos não é uma questão das internas, ou das feministas negras, é uma questão de todos nós, as pessoas precisam estar preocupadas em modificar, ou permanece do jeito que estar.

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A sociedade tende a condenar e julgar mulheres que já foram presas, inclusive muito mais do que os homens. Como é o momento em que elas estão livres, mas não tão livres?

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Carla Lima: As dificuldades de antes de intencionam muito mais com esse estigma de ter passado pelo cárcere. Poucas internas tem o ensino médio completo, então já começam as dificuldades para conseguir um emprego, que é exigido uma formação.

 

Muitas cuidavam dos filhos ou trabalhavam na informalidade como manicure, trancistas, mas formalmente não conseguiram antes estabelecer um vínculo de carteira assinada. Algumas quando saem, a família ou empregador conseguem entender a situação, mas dependendo do crime, contra o patrimônio por exemplo, a empresa não vai querer reintegrar. A família acaba se afastando.

 

Essas mulheres ficam desamparadas, sem nenhuma perspectiva, outras se tornam reincidentes, pois não tem garantia mínima dessa mulher se manter.

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A questão é ressocializar quem nunca foi socializado?

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Janine Souza: Exatamente. E esse é o ponto de partida dos termos que a gente usa. Não costumamos usa o termo ressocialização, tendo em vista que nunca participaram da sociedade de forma tranquila, usufruindo de todos os direitos. Antes essa mulher já estava apartada da sociedade e quando ela entra [no sistema carcerário], ela vai ter mais um estigma.

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Como é a relação das internas com suas famílias e filhos? Elas mantem contato com eles?

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Carla Lima: As internas não querem que os filhos tenham essa imagem da mãe, nem que os sejam violentados nas revistas. Por isso, muitas evitam as visitas para que os filhos não presenciem esse tipo de situação.

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Janine Souza: Há a vergonha também. Quais exemplos elas vão passar para os filhos? O exemplo maior é a mãe. As vezes os familiares também não querem visitar ou manter o contato. Ao contrário das penitenciarias masculinas, que há muitos visitantes, as mulheres não têm esse perdão.

... imagine alguém num espaço restrito, com pessoas que nunca viu, sem suas coisas, sem poder dormir na hora que quer, comer na hora que quer, sem condições de higiene básica, como que consegue viver? Será que ali de fato vai conseguir reparar o erro que essa pessoa cometeu?

Arquivo Dignidade Encarcerada/ Maria Clara Ribeiro

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